Modelar, cortar e costurar seriam passos iniciais para tornar real um “projeto” de roupa, de moda. Bordar seria então caminhar um pouco mais, e transformar uma expertise manual em detalhe transformador na peça criada.
E porque criar é viver em constante evolução, algumas técnicas não tão recentes se reformulam e ganham novo status no processo criativo. É mais ou menos isto o que se dá com o chamado visible mending, ou “reparos visíveis”, feitos por meio de bordados. Aquele recurso que serviria para encobrir um defeito… acaba então se transformando num efeito especial.
A busca por este recurso segue em escala crescente, na esteira das atitudes mais sustentáveis, baseadas, por exemplo, na reutilização de peças do guarda-roupa.
Pra ser visto
A preocupação em fazer da moda uma via sustentável, em que contam o resgate de técnicas ancestrais e o garimpo de materiais já utilizados para que ganhem vida nova, povoa o imaginário de quem deseja dar novos rumos ao próprio processo criativo.
Moda é Notícia já trouxe aqui alguns exemplos muito bem-sucedidos de upcycling, como os modelos cheios de estilo da Avra Bags, da capixaba Cinthya Duarte, e as criações deslumbrantes em couro da carioquíssima Patrícia Viera, que vestem Lady Gaga, Elizabeth Hurley e outras mulheres que buscam moda diferenciada. Patrícia rastreia constantemente o estoque de matéria-prima para novas criações.
Agora chegou a vez de seguir pela trilha do upcycling com o olhar apurado de duas pesquisadoras e semioticistas, Sylvia Demetresco e Jacqueline Zarpellon. Em trabalho conjunto, apresentado no Colóquio da Moda em 2021, as duas estudiosas entraram no tecido da história contemporânea da moda para fazer o registro desta manifestação tão atual na moda autoral.
“Fechadas por tanto tempo em casa, as pessoas foram descobrindo talentos próprios, como o de consertar ou dar uma cara nova para roupas que tinham no guarda-roupa”, diz Sylvia Demetresco, que pôde conferir a “nova realidade” em uma de suas estadas em Paris, durante o período mais crítico da pandemia.
“Seja uma mancha, seja um furo ou um rasgo na peça, é possível criar com agulha e linha para que a roupa volte novamente ao uso, só que com um toque muito pessoal”, anuncia a pesquisadora e autora de tantos livros na área de Visual Merchandising.
Movimento
O visible mending ganhou status próprio na moda. Há bibliografia sobre o assunto, trazendo detalhes sobre as origens e sobre as variações em torno da técnica secular, que ganha impulso hoje.
Se no Japão milenar a prática de recuperar roupas danificadas recebem os nomes de boro e sashiko, no Ocidente, o recurso recorre a semelhantes tipos de procedimentos, do cerzimento ao bordado propriamente. “Eu mesma recuperei uma blusa bege, adorada, que apareceu com manchas esbranquiçadas, em forma de pingos”, conta Sylvia. Com agulha e linha de bordar, ela contornou os “pingos” com pespontos, e o que era mancha passou a valorizar a roupa.
A inglesa Sarah Burton, diretora criativa da marca Alexander McQueen, recorreu ao garimpo de tecidos ao idealizar a coleção de primavera-verão 2020. Leves e artesanais, com os volumes e assimetrias próprios da marca, as criações foram produzidas a partir de tecidos que estavam no ateliê e já vinham de coleções passadas. O resultado foi um desfile criativo e instigante, trampolim para a reflexão sobre a capacidade de a moda tornar-se mais sustentável.
Em Nova York não poderia ser diferente. A estilista Emily Adams Bode é conhecida pelas criações em moda masculina focadas no upcycling. Sua marca Bode, com butique no Lower East Side, une o patchwork à alfaiataria, trazendo o bordado para a camisaria, pra que tudo conviva em harmonia.
Atitude
No estudo realizado, Sylvia Demetresco e Jacqueline Zarpellon atentam para a moda como processo criativo e como consumo. Elas levam em conta o papel de quem veste a roupa – ou dela se apropria –, participando da criação da “nova” peça, a partir de ações concretas, isto é: reparar, reutilizar, reformar, customizar.
“As escolhas do vestir não são mero acaso, mas fruto de nossos valores políticos, sociais, econômicos”, dizem as autoras, para quem o que vestimos diz muito sobre nós. Vestir é um ato que mostra, segundo elas, como queremos ser vistos e nos relacionarmos com os demais. Tudo isto levando em conta as instâncias da vida: “O vestir social, de cunho profissional e familiar, passando por relações pessoais – entre pares e amigos –, e o vestir-se pelo aprazer de si, que carrega traços de gosto próprio, focado na diferenciação ou identidade dos sujeitos”.
Vestir sustentável
Sustentabilidade é tema que conduz o estudo. “A palavra sustentável traz questionamentos sobre seus usos e modos de se fazer”, comenta Jacqueline. Segundo ela, as marcas de moda utilizam o termo “visando se engajarem com consumidores conscientes, atentos aos valores contemporâneos”.
Se reparar, por meio de “consertos visíveis”, tem em vista comportamentos mais sustentáveis, o reutilizar (upcycling) consiste na transformação/atualização de peças para novas formas de usar e vestir. Já Reformar seria ressignificar peças gastas pelo tempo, enquanto reconstruir é renovar, passando pelo processo de desmanchar para refazer. Customizar, finalmente, implica na personalização, a partir de uma peça-base, com adição de detalhes por processos manuais.
Processo complexo, que envolve pessoas e culturas, as pesquisadoras concluem recordando que a moda, por seu um processo humano, é estética muito entrelaçada com a ética.